domingo, 8 de maio de 2022

O REI DA NOITE

 A noite parecia mais deserta do que o habitual. Não era uma noite quente: uma brisa suave e fria tomava conta dos espaços. Ali, na calçada, ainda haviam mesas vazias. No entanto, na mesa mais afastada, sete pessoas falavam alto, enquanto bebiam. Foi então que escolheram, justamente, a mesa mais próxima desse grupo. Os pastéis sentiam a brisa constante e, à medida que iam esfriando, ele despertava maior curiosidade sobre o que se dizia na mesa em sua frente.

Na camisa preta a palavra "Xamã". Com fala contundente e a voz rouca o rapaz mais velho dizia que não tinha tido uma vida fácil e isso o tornara uma "pessoa ruim". Declarou que tinha um filho, mas que o casamento naufragara. Com certo ar de revolta e rancor reclamou da ex-esposa, afinal havia combinado com ela que a função da mesma seria apenas cuidar do filho dele, enquanto ele traria para casa "tudo de bom e de melhor". Entre as cinco meninas presentes, apenas duas pareciam dar a atenção que ele achava que merecia. Uma certa euforia misturada com encantamento parecia tomar conta da menina de cabelos tingidos de rosa e, sua amiga, permanecia atenta as palavras que ele proferia. Em uma de suas confissões o rapaz afirmou que não tinha tido uma boa mãe e contou certo episódio de sua infância que causando espanto às ouvintes, mas não entendido pelo observador. Um jogo tenso começara a se desenrolar e o rapaz confuso não conseguia estabelecer foco. No entanto, era visível o seu interesse pelas meninas e o seu desejo latente de adquirir algo a mais.

De repente uma criança se aproxima e oferece os doces que estava vendendo. Preocupado, o rapaz, perguntou: "Onde estão seus pais?". A criança, prontamente, respondeu: "Trabalhando". Ele então pediu a criança todos os doces que ela ainda tinha que vender. A criança os despeja na mesa, enquanto as meninas observavam a cena. O rapaz sacou a carteira e retirou quatro notas de um dólar dizendo: "Esse dinheiro é seu, vou comprar todos os seus doces para que você possa ir para casa". O ato impressionante, sob o ponto de vista das meninas, pareceu não ter o mesmo efeito para a criança, que recusou o dinheiro desconhecido. Sem saída, o rapaz tenta estabelecer vínculo com o menino, de aproximadamente 12 anos de idade. O valor dos doce: 14 reais. Sem saída, o rapaz precisou realizar o pagamento em moeda brasileira e a criança ao invés de se retirar, permaneceu ali querendo brincar com aquele que havia sido tão gentil. As duas meninas que o rapaz havia se interessado levantam e buscam o banheiro. Nesse momento, surge a oportunidade de tirar a criança da jogada. Dessa forma, depois de tanto pedir para que o menino fosse para casa, o rapaz precisou dizer: "Agora, o assunto é entre adultos e você deve ir embora". Entendendo o "tom" o menino se despediu e retornou ao seu mundo.

A conversa continua até que o rapaz comenta: "Eu na verdade sou playboy, filantropo e gostaria de ser milionário ou bilionário". Um das meninas diz: "Aí... tá de boa!" O papo segue como um monólogo: o relato de um oprimido que agora tornara-se opressor. Nas falas, as marcas de um machismo estrutural e, sem o menor pudor, preconceitos latentes de ordens variadas. Embora as meninas demonstrassem o cansaço da noite, havia ali olhares de admiração. Contudo, o rapaz, na eminência do fracasso, propõe a ida para outro lugar. Reticentes, as meninas acabam cedendo e convencendo as outras amigas dessa nova oportunidade. 

O garçom comenta: "Mulher nova demais... Problemas demais... Esse cara só tem lábia não vai arrumar nada". A conta chega e o valor de 200 reais é pago pelo rei da noite. O grupo se levanta e continua a vida.

Nesse momento, o bar tornara-se menos interessante: ficara mais deserto. Assim, ele deixa de observar as pessoas, enquanto os dois pastéis frios testemunham o presente momento. A noite se esgota. A conta chega, a máquina de cartão trabalha e o aplicativo chama o transporte. No entanto, antes de entrar no carro, ele vê o rei da noite do outro lado da rua sem objetivo... Por um pequeno instante, uma certa empatia parecia tomar conta de si. A falta de objetivo os conectavam de algum modo e talvez isso fosse percebido desde o início - quando ele passou a observar cada fato presente na cena. Talvez, o rapaz, ele ou todos e todas, carecem de um verdadeiro Xamã, não o rapper, mas aquele que utiliza poderes mágicos para curar males e doenças, encontrar coisas perdidas e, até certo ponto, controlar os acontecimentos.

contudo, a noite parecia ter chegado ao fim. Na volta para casa, o rádio do carro, em volume mais baixo exclama: "O Brasil não é só verde anil e amarelo... o Brasil também é cor de rosa e carvão!". 

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domingo, 25 de julho de 2021

LARGO DA PRAINHA

O dia começara sem que ele tivesse percebido. Lá fora, o sol se destacava num céu azul da manhã de inverno. Dentro de casa, tudo isso parecia imperceptível: chão gelado, paredes frias e uma torneira pingando. Foi então que levantou-se sem propósito, porém com a consciência alerta de que o dia havia começado. Com a xícara de café quase vazia, recebeu um convite para almoçar. Lugar de sempre. Com certo esforço, abriu o chuveiro de modo que a água permanecesse bem quente. Escolheu a roupa apropriada para o ambiente interno de sua casa. Solicitou o transporte, que em 3 minutos já se encontrava na porta de sua casa. Desceu as escadas e em contato com a vida real sentiu calor. Acompanhado, ele chegou ao local que mantinha os protocolos sanitários adequados: espaço aberto, distanciamento mantido, claridade típica de um dia solar. Escolheu a mesa e, logo, reconheceu algumas pessoas. Observava atentamente alguns fragmentos de gestos, escutava ao fundo traços de conversas... tudo em tom de celebração. A música deixava um certo ar de alegria e as pessoa que ali estavam brindavam, sorriam - parecia que a vida brotava em cada sombra confortável que o guarda sol preso às mesas propiciava. Foi então que lhe veio certo mal estar. Ele não se reconhecia e, talvez, por isso passou a observar com mais cuidado o que acontecia. Faltava-lhe algo em meio a tanta gente. Significado e significante se misturavam em meio as bebidas. O não pertencer se tornara visível. Ele só queria estar, talvez até ser visto e/ou notado. Mas a felicidade não o contagiava e cada vez mais ele se via distante de todos e até mesmo do mundo. Ao lado, o casal escolhia os pedidos do cardápio, em frente, a roda de amigos sorria, na outra ponta um recém nascido brincava com uma pequena bola enquanto permanecia amarrado no carrinho de bebê... Mais pessoas chegavam. E ele sentia falta de um outro espaço-tempo e a todo instante se perguntava como tudo podia estar diferente. Mas a sua posição de expectador lhe dava uma visão privilegiada e ele percebia a ilusão dissipada no ar ... Tudo permanecia cristalizado e, essa consciência existia, porque ele permanecia suspenso no ar. Como pertencer aquilo tudo? Como esquecer o anterior? Diante de cada gesto, cada recorte de conversa tentava entender. E, cada entendimento o afastava de tudo. Até certo momento, se sentiu como os times que compõem o meio da tabela do campeonato brasileiro. Faltava-lhe esperança, porque sabia que não era candidato ao rebaixamento e, tampouco, teria chances de ganhar o titulo. Mas permanecia, fisicamente ali, compondo aquele cenário, enquanto o vazio tomava aos poucos conta de si. Foi então que resolveu dirigir seu olhar para fora de ambiente: do outro lado da rua o grafite destacava o rosto de uma mulher preta, cujo olhar fora projetado de forma fixa e atenta, voltado para o ambiente repleto de mesas e gente. Muda, a imagem também observava tudo. Contudo, talvez, de um outro ângulo. E foi então que percebeu que não fazia parte de nenhum campeonato. A imagem via o que realmente era o real: diante dela, em meio a tantas pessoas, uma alma: alma caída, alma penada... Ele, então levantou-se, despediu-se e seguiu para casa. Diante da mudança brusca da temperatura, deitou-se e adormeceu. Amanhã ele recomeça.   

domingo, 9 de fevereiro de 2020

SE EXISTE DEUS EM AGONIA

Os dias começaram a passar mais rápido. Mas ele continuava, pacientemente, a espera. Percebia certo padrão e alguma regularidade frente aos acontecimentos. Sua sensação de cansaço tornava-se evidente. A pouca esperança o prendia. Mas a realidade parecia se desnudar e todas as suas projeções se traduziam num mundo criado por si mesmo. E assim, ele seguia a espera de um acontecimento. Aos poucos, sua energia ia dissipando e a dúvida tomava conta de cada segundo em sua existência. Não tinha mais a certeza de que deveria continuar e tampouco sabia aonde ia chegar. Exausto, ele em pensamento silencioso entoa mais uma prece, enquanto o vazio toma conta de seu interior. Durante a noite escura, apenas alguns flashes de um tempo bom, recortes de instantes de felicidade e de esperança. E o tempo caminha firme, talvez para que nada aconteça. E, talvez, o que resta é mesmo continuar em prece porque "se existe Deus em agonia, manda logo essa cavalaria... que hoje a fé me abandonou..." 

sábado, 2 de novembro de 2019

MOVIMENTO E MUDANÇA

Para que haja vida se faz necessário haver movimento e mudança. Parece ser esta uma constatação óbvia. Mas ele andava descrente. Diante da repetição de padrões e regularidades parecia que as coisas estavam fixas, prontas e acabadas. Ele seguia num esforço perseverante, com resultados oscilantes. O cotidiano repetia cadenciadamente tudo aquilo que já tinha vivido. Observava que dessa vez nem mesmo os personagens eram outros. Diante de mais uma recusa, percebeu o quanto se colocava vulnerável frente aquela situação. Percorria um espaço-tempo marcado pelos mesmos fatos anteriores e novamente o que sentia acabara de o fazer concluir que ainda permanecia parado, sem obter consequências daquilo que vivera e novamente voltava a viver. Porém, por um milagre a salvação parecia agora vir em sua direção. Foi um lapso repentino, lento, sofrido que o fez perceber que a mudança estava acontecendo em si mesmo. Mas ainda faltava-lhe um ato de rebeldia, de libertação e de rompimento. A ilusão o deixava imóvel e assumia uma forma perturbadora. Não era esperança, era mesmo ilusão. Um mundo fictício tomava o lugar da realidade e ele depositava toda a sua confiança em segundos seguintes. Exausto, já não sabia mais o que fazer. Percebia que não havia mais como tentar e/ou dizer. A grande verdade é que todas as suas súplicas estabelecidas de forma variada eram apenas ecos de pedidos sem escuta. Sendo assim, deixou o cansaço físico e mental tomar conta de si mesmo. Cansado ele adormeceu na esperança de, verdadeiramente, acordar e perceber a vida. Perceber que sua salvação não está no movimento das coisas e nem tão pouco em uma mudança externa. Sua salvação está nele próprio, em seu movimento e em sua própria mudança.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

SEGUNDO SOL

Aquele tempo presente incômodo fez ele imaginar a possibilidade de se ter uma máquina do tempo. Diante dela, uma questão: voltar ao passado ou se adiantar para o futuro? Enquanto uns, prontamente, apontam para o passado em busca dos dias felizes de uma infância, outros permanecem em dúvida. Alguém confessa que não se casaria, ou melhor casaria com outra pessoa e mudaria o rumo de muitas coisas. Enquanto suas ideias fervilhavam, ele parecia aos poucos acordar do que ele ainda não tinha definido claramente se era um sonho ou um pesadelo. No prato, o colorido da salada, o peixe rosado e o arroz de vários ingredientes contrastavam com o prato da frente que possuía poucas cores. O antagonismo entre os pratos aos poucos foi lhe trazendo certa consciência. E isso fez com que escolhesse ir para o futuro arriscando o caminhar de 30 anos. A revelação ecoou num tom de surpresa. Mas talvez ele estivesse querendo justamente olhar para trás e ter a sensação de certeza que até então lhe parecia ausente. Aos poucos o colorido do prato saciava a sua quase fome. Sem mais vontade ele deixava a salada e o arroz espalhado no prato. Enquanto ouvia alguém lhe dizer que faltava-lhe fé. Fé. Sem maiores chances de estar no topo do campeonato e também por não ser candidato ao rebaixamento ele segue bem ali junto aos times do meio. Enquanto isso alguém constata que ele parecia estar como antes. Contudo, olhando o passado e diante do presente ele, ainda assim, prefere o futuro. A preferência talvez destrua a tese daqueles que acham que lhe falta fé. Ele está apenas cansado... mas não desiste porque ele sabe que o campeonato precisa dos times do meio. Por enquanto ele continua ouvindo os versos em tom de prece "quando o segundo sol chegar..."

terça-feira, 4 de junho de 2019

FELIZ CAMINHAR

"... quando a vida esmurra a porta, a gente solta o trinco e lhe oferece um chá... pede calma e bota a alma pra pensar. Guardo suas mãos dentro das minhas e pra dentro dos meus olhos o seu olhar. No enredo suave a vida a nos enveredar, pede calma e bota a alma pra pensar".


domingo, 26 de maio de 2019

INSTANTE

O teto e as paredes uniam-se sem arestas, caladas, de braços cruzados. A sensação era a de que estivesse dentro de um casulo. Deitado espiava o teto branco - sem pensamentos, sem emoção - uma coisa olhava a outra. Aos poucos, num balançar dos pés, nasceu-lhe longinquamente a consciência. O luar empalidecia o quarto e a cama. De instante a instante, de repente, algo brotava no interior de sua mente. O teto e as paredes paradas o coração ritmado e o pensamento parecia clarear. O que lhe incomodava era esse imenso tempo presente que parecia não terminar, mesmo sabendo que o instante atual passara a ser o anterior. A velocidade do tempo era inversamente proporcional a realização de fatos. As coisas não mudavam, as formas permaneciam as mesmas. Tudo cristalizado. Talvez, a dificuldade com a realidade fosse a sua pior alucinação. E assim continuava a espera. Ele insiste. Aguarda o próximo instante. Diante da noite densa e escura ele, na dúvida, resolveu confiar-lhe a última chance com a esperança de que tudo mude. Talvez, ilusoriamente, estivesse acreditando na existência de algo. Porém, a materialidade do que se tinha comprovava que só o que está morto não muda.